Responsabilidade Humana

18/02/2010 07:53

Introdução 

Num reino distante, um homem ofende o seu rei e é imediatamente colocado na prisão. Pouco tempo depois, um mensageiro do rei vai ter com o preso e, ainda em prisão, diz-lhe que se ele vier diante do rei, ajoelhar-se e, humildemente, implorar o seu perdão, não somente será posto em liberdade, mas será significativamente enriquecido e honrado. O prisioneiro pensa seriamente na proposta, arrepende-se sinceramente da ofensa iníqua ao seu rei, e voluntariamente se quer prostrar diante dele pois aceita com alegria a oferta real. Ele quer sair da prisão, mas está limitado pelas paredes com as suas barras de aço e portão de ferro.

Outro homem também ofende o seu rei e é também colocado numa prisão. Contudo, este homem é muito ingrato, de mente perversa e o seu coração está repleto de ódio pelo seu rei. Algum tempo depois, o rei compassivo envia um mensageiro à prisão, ordena que o prisioneiro seja libertado dos grilhões que o acorrentam e que a porta da prisão seja aberta. Fala com o prisioneiro e diz-lhe que se ele vier diante do rei, ajoelhar-se diante dele e pedir perdão pela sua má conduta, será perdoado, libertado e colocado num lugar de alta dignidade. Todavia, ele é tão teimoso e cheio de arrogância que não pode querer aceitar tão amável oferta. O seu orgulho e a oposição do seu coração são de tal ordem que a hostilidade ao seu rei exerce sobre ele uma influência maior que qualquer promessa real. Ele decide continuar na prisão!

A responsabilidade humana na salvação e na proclamação do Evangelho é um assunto que choca o raciocínio humano. Se Deus predestinou tudo o que vai acontecer, qual é a minha responsabilidade na resposta ao evangelho? E se Deus realmente elegeu os que haverão de conhecer a salvação, e se Deus não falha os seus intentos, qual é o propósito de evangelizar? Onde é que a responsabilidade humana encaixa nos decretos eternos de Deus? 

Exposição de Romanos 9.30-10.21 

I.                    Sumário (9.30-33) 

Que conclusão tiramos das notas anteriores (v. 30a)? Qual é então a objecção da chamada de Deus de muitos gentios e somente alguns judeus segundo o seu eterno propósito? Contrariamente aos judeus, os gentios não conheciam a miséria do seu pecado pela Lei. Assim, não estariam tão apressados a procurar uma cura. No entanto, chegaram à justiça pela fé; não em se submetendo às cerimónias rituais da Lei, mas abraçando Cristo e submetendo-se ao Evangelho (Vs. 30b-32). Os judeus “tropeçaram na pedra de tropeço”, isto é, na fé no Cristo crucificado. Esta é uma das causas da falha de Israel. Caíra pela sua incredulidade (v. 33). 

II.                 A justiça da Lei e a justiça da fé (10.1-13) 

Embora Paulo soubesse que os judeus agora estariam num estado de rejeição, ele sabia também que Deus ainda era gracioso (v. 1). Os judeus tinham um zelo apaixonado pelas coisas de Deus, pelos assuntos da religião. Neste sentido muitos dos judeus eram, sem dúvida, bastante sinceros; mas sinceridade não constitui verdadeira piedade (v. 2). Em oposição à justiça de Deus, decidiram estabelecer a sua própria justiça porque “não apreenderam o que tinha sido revelado”[i]Não porque não tivessem tido a oportunidade! Logo, a sua ignorância era voluntária e criminosa (v. 3). Tinham recusado a revelação do Messias que é o fim do esforço da auto-justiça em guardar a justiça (v. 5). Apegavam-se à Lei, mas a Lei em si mesmo é contra a Lei como caminho de assegurar a justiça (v. 5). O caminho correcto de reconciliação com Deus já tinha sido expresso por Moisés (Deutoronómio 30.11-14). A impossibilidade não é pedida; nem o subir aos altos céus, nem o descer ao mais profundo abismo afim de obter esta justiça (Vs. 6-7). Pelo contrário, a justiça está presente e ao teu alcance.

O caminho da salvação é agora claro porque a Lei é magnificada e honrada pela morte e ressurreição de Jesus Cristo. Se alguém confessa fé em Jesus Cristo como seu Senhor e Salvador, esse será salvo pela justiça de Cristo que lhe é imputada através da fé. Contudo, nenhuma fé é justificadora que não seja também poderosa na santificação do coração, regulando todos os seus afectos pelo amor de Cristo (Vs. 8-10). Mais uma vez Paulo atesta que o caminho da salvação é o mesmo tanto para judeus como para os gentios. E todo aquele (gentios e judeus) que assim crerem não serão desapontados, como dizem as Escrituras (V. 11). Todos são igualmente bem-vindos a esta salvação. O judeu não tem aqui qualquer privilégio especial, e disto o grego (gentio) não é rejeitado. Um simples caminho de salvação é proposto a todos: fé no Senhor Jesus Cristo. Nem a ninguém que ouça a doutrina da salvação e acredite como lhe é ordenado, lhe seja permitido orar sem esperança ou suplicar sem sucesso o trono da Graça (Vs. 12-13). 

III.               O Evangelho para o mundo inteiro 

Não existe fé em Cristo sem se ouvir falar em Cristo. Pode-se crer sem ver, mas não sem ouvir; assim, cremos que homens como Alexandre o grande ou Júlio César existiram, embora nunca os tenhamos visto. Ouvindo falar deles temos razão para acreditar neles (V. 14). E para ouvirmos tem que haver quem fale. Era necessário que o evangelho seja pregado aos gentios. Tinha que haver alguém que lhes falasse no que eles deveriam acreditar. “O Novo Testamento ensina que a função primordial de espalhar o evangelho cabe ao homem especialmente comissionado para o fazer[ii]”.

Não obstante, o Evangelho é dado não somente para ser conhecido e crido, mas essencialmente para ser obedecido. Não é um sistema de noções, mas uma regra de prática. E embora sendo conhecido e crido, nem todos têm obedecido (V. 16). Paulo não condena as pessoas por não terem acreditado no que nunca ouviram, mas queixa-se dos que não acreditaram na mensagem que lhes foi entregue, que é a Palavra de Cristo (V. 17). A objecção sobre o facto de que os gentios nunca terem ouvido o Evangelho antes é supérflua, porque a sua responsabilidade já foi previamente provada (Romanos 2.14-15). O problema crucial é que crer é obedecer. Tem a ver com a mente e a vontade (V. 18). Israel tinha provocado Deus com a adoração de outros deuses, mas não devemos supor que o propósito divino de eleger e salvar os gentios seja condicionado por vingança. Os judeus podem objectar a pregação entre os gentios; mas não será isto segundo a declaração positiva de Deus? Ele pré-viu a rebelião e descrença de Israel (Deutoronómio 32.21). Isaías ainda mais prevê a salvação dos gentios (Isaías 65.1) e no versículo seguinte (65.2) prediz o afastamento de Israel (Vs. 20-21). 

Responsabilidade humana na resposta ao Evangelho 

As principais objecções quanto à aceitação de qualquer responsabilidade humana em relação à resposta ao Evangelho derivam de uma má compreensão do que a responsabilidade humana é quando confrontada com a soberania absoluta de Deus na salvação. O ser humano nunca deve ser tomado como responsável por não usar meios que não estão ao seu alcance, mas por não usar os que estão. Ele nunca é responsável pela impossibilidade de usar a sua incapacidade, mas somente pela relutância em usar a sua capacidade. Alguém esfomeado não será responsável se morrer de fome não tendo nada para comer; será responsável se morrer diante de um prato cheio de comida. Ainda assim, será responsável se não tentar encontrar algo para comer; ou se morrer por não gostar da comida que lhe é apresentada; ou se, por obstinação, não quiser aceitar comida nenhuma; ou ainda se não estiver ciente que a sua situação actual o levará a uma morte certa. A base sobre a qual esse homem é tido como responsável não é o morrer de fome, mas porque não quer não morrer de fome. E a razão pela qual ele não usa os meios adequados para resolver a sua situação não é porque ele não poderia se estivesse disposto a isso, mas somente porque não está disposto.

Esta analogia ilustra a responsabilidade humana em relação à resposta humana ao Evangelho. O homem natural não pode responder afirmativamente ao Evangelho, mas fisicamente tem a capacidade e o potencial de procurar esse mesmo Evangelho. A prova de que o pode fazer é o emprego dos meios da Graça, a sua inconsideração e indolência – o que pressupõe capacidade de fazer o contrário – e o encorajamento de Deus para usar esses meios, os quais Deus nunca teria dado se o homem não tivesse capacidade de os utilizar (Romanos 10.13; Mateus 7.7). A Terra não tem o princípio da fertilidade, mas o seu potencial. Nela mesmo, a Terra não tem auto-capacidade de fazer as coisas crescerem; somente precisa de luz e chuva do alto. Da mesma maneira, o homem tem todo o potencial para buscar a salvação, embora não tenha disposição para o buscar como Deus quer. Aqui reside o problema: a vontade, ou melhor, amá vontade. O homem não é responsável por não poder salvar-se, mas por não querer buscar a salvação tal como ela é revelada (Salmos 10.4). Como os judeus, o homem pode buscar a justiça tentando trepar a alta e dura montanha do legalismo (Romanos 10.3-7).

Pode, então, o homem ser recompensado pelo seu próprio esforço de busca? Nem pensar! Deus não tem o dever de recompensar seja quem for, nem sequer é obrigado a providenciar os meios para revelar o Evangelho. Assim seria uma questão de lei e não de graça. Não argumentamos sobre a responsabilidade humana do que o homem não pode fazer, mas unicamente sobre aquilo que poderia fazer se o quisesse. Se pusermos um garrafa de vinho e uma bíblia diante de um alcoólico, não duvidamos do resultado da sua escolha, independentemente do facto de que ele seja completamente livre de escolher ao contrário. Da mesma maneira, o homem no seu pecado não tem vontade de fazer a vontade de Deus. E se não tem vontade de fazer a vontade de Deus, ele também não tem vontade de ter a vontade, o que seria o mesmo. Assim, quando alguém inicia uma busca sincera, ele apenas busca o querer ter a vontade. Pois se ele tivesse a vontade de ter vontade, não necessitaria de a buscar, pois já a teria antes mesmo de a buscar. Quando inicia a busca, o homem coloca-se exactamente no lugar onde Deus quer que ele esteja (Romanos 10.11-12). A incapacidade de evitar o pecado e a plena consciência desse facto é a base da procura da capacidade. Esta é a responsabilidade humana. Se o homem usar os meios ao seu alcance, Deus dar-lhe-á o que não está ao seu alcance (Romanos 10.9; Hebreus 11.6). Como John Murray escreve, “a negligência dos meios é assim uma ofensa à sabedoria e conselho de Deus, logo, pecaminoso e desonrante. Justificar a negligência dos meios tendo por base a incapacidade humana é justificar um pecado com outro pecado (…) a nossa incapacidade é a nossa responsabilidade e pecado[iii]”.

 A responsabilidade humana de proclamar o evangelho 

Deus sempre dá o primeiro passo na salvação. A iniciativa começa muito antes de a alma ser despertada e consiste numa chamada interna e externa. A chamada interna pode ou não ocorrer, mas é sempre precedida pela chamada externa que inicia o processo da salvação. Um homem pode ser externamente chamado tanto pela voz da sua consciência como pela Natureza (Romanos 2.15; Salmos 19.3; Romanos 10.18), mas nunca descobrirá o caminho correcto sem a orientação bíblica (Salmos 119.105). Um filósofo pode compreender muitas coisas, mas será sempre como o matemático que se aproxima do “zero” sem contudo o atingir, estando perdido numa sucessão infinita de fracções decimais, tal como Zenão e os seus paradoxos. Quando se diz que a fé vem pelo ouvir (Romanos 10.17), não quer dizer que todos os que ouvem crêem, pois não é verdade; mas que a fé não existe a não ser que exista uma mensagem a ser ouvida e crida. A fé não vem a não ser através de uma mensagem, ou, noutras palavras, a não ser que haja algo para ser conhecido e crido.

Devemos clarificar que ninguém crerá a não ser que ouça a Palavra de Deus. E “ouvir” implica muito mais que um simples exercício do aparelho auditivo. Envolve também o exercício da mente. Assim, compreender a palavra de Deus é a raiz da fertilidade. A mensagem que é ouvida deve igualmente ser devidamente compreendida para que o ouvinte seja salvo. O ser humano é uma criatura racional e deve apreender coerentemente o que ouve. Não quer dizer que pode ser salvo pela mera compreensão – pois teria a ver unicamente com o intelecto –, mas sem compreender o conteúdo da mensagem ele não será salvo. “Onde encontramos a palavra da fé no cristão? (…) Encontramo-la no coração e na boca. É possível ter fé na boca sem a ter no coração. Mas não encontrarás fé no coração que não esteja também na boca”[iv]. É, assim, verdadeiramente impossível acreditar no Evangelho sem sentir a compulsão interna de o proclamar de uma maneira ou de outra.

Romanos 10.13 ensina-nos que a necessidade da Palavra de Deus para a salvação implica também a necessidade da sua pregação. Mas qual é a necessidade de pregar a Palavra se, de qualquer forma, os eleitos serão inevitavelmente salvos? Respondemos perguntando, que necessidade temos de comer se vamos inevitavelmente morrer? Quando Deus ordena os fins ordena também os meios para atingir esses fins. Se Deus, por milagre, forjasse a fé no coração sem pregação, Ele poderia dispensar o pregador. Mas Deus planeou que seria através da pregação que isso aconteceria porque “aprouve a Deus salvar aos que crêem pela loucura da pregação” (1 Coríntios 1.21). Não pela “pregação louca”, mas pela pregação da cruz que é vista pelo mundo como loucura. Daí a responsabilidade de proclamar o Evangelho. Se Deus atesta que a pregação é vital para a salvação, não é surpreendente que se possa ver o seu enfraquecimento e desaparecimento como o maior desastre que a Igreja enfrenta actualmente. Além do mais, a pregação da Palavra não é uma opção, mas um cargo, “Ide e fazei discípulos” (Mateus 28.19). Não obstante, a questão da responsabilidade não é que os ministros da Palavra têm de a pregar, mas que têm que querer pregá-la, pois não conseguem evitá-lo (1 Coríntios 9.16). Os meios são da minha responsabilidade; os fins são assunto divino. 

Conclusão 

Será que os prisioneiros são responsáveis por continuarem presos? O primeiro está fisicamente incapacitado de atravessar paredes, ou quebrar a porta de ferro, ou de se soltar das correntes que o retêm. O segundo é moralmente incapaz, pois tem tudo o que necessita para ser livre, mas ele não quer sê-lo. Falo similarmente da responsabilidade humana diante do Evangelho. Frequentemente proclamamos que a doutrina da depravação total humana é teoricamente verdadeira, mas dificilmente a aplicamos a nós mesmos, ou só a aplicamos quando pretendemos justificar pecado nas nossas vidas. Pensamos mais rapidamente que o primeiro prisioneiro retrata o homem no seu estado natural. Pensamos com mais facilidade que não somos tão orgulhosos e obstinados como é o segundo prisioneiro. Pensamos que não somos tão maus quanto isso. No entanto, é o segundo prisioneiro que nos representa em todo o nosso pecado! Como ele, o homem natural não pode nem quer responder afirmativamente ao evangelho de libertação. Fisicamente temos a capacidade; moralmente não, estamos presos. Como o segundo prisioneiro, o homem natural não vem à salvação porque quer não vir.Não quer porque realmente odeia o seu rei e o caminho que estabeleceu para a salvação. E nem sequer quer querer mudar a sua disposição. A sua responsabilidade é a sua má vontade de fazer o que pode para mudar.

Quando alguém pergunta “que farei para ser salvo?”, não lhe devemos dizer para ir para casa orar, ler a Bíblia, ou levar uma vida honesta. Devemos dizer-lhe “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Romanos 10.13). Mas um pecador pode legitimamente perguntar, “não é isso precisamente o que um homem não consegue fazer?” Tal resposta não é, sem dúvida, mais do que uma dificuldade teórica levantada por alguém que quer uma desculpa para não obedecer o mandamento. O homem natural é o segundo prisioneiro, não o primeiro. Tem a mensagem, o mensageiro e a porta aberta. Mas a sua incapacidade é a condição pecaminosa da sua vontade, e a única razão pela qual ele não pode aceitar o que lhe é proposto é que ele é de tal maneira pecador que não pode usar a sua vontade para aceitar. Ele não pode querer porque odeia demasiado o seu rei. Por um tal “não pode” ele é certamente responsável. A doutrina da incapacidade humana não afirma que o homem não pode acreditar, mas afirma que o homem não pode acreditar na sua própria força. Podemos crer com a força de Deus. É nossa responsabilidade se não o fizermos. Deus é mais divino do que os arminianos o apresentam e mais humano do que alguns calvinistas O concebem. A responsabilidade humana e a soberania de Deus são duas doutrinas amigas; ninguém vai querer reconciliar os que já por si são amigos!


 

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